segunda-feira, 27 de outubro de 2014

O despertar da bodhichitta

O pai de uma criança de dois anos conta que ligou a televisão e, inesperadamente, viu a destruição causada por uma bomba colocada em um edifício público de Oklahoma. Assistiu, enquanto os bombeiros carregavam corpos inertes e ensangüentados de bebês que eram retirados das ruínas da creche que funcionava no primeiro andar. Diz que, no passado, era capaz de se distanciar do sofrimento alheio. Mas, desde que se tornara pai, isso havia mudado. Sentia como se cada uma daquelas crianças fosse seu filho. Sentia a dor de todos os pais como sendo sua.

Essa identificação com o sofrimento dos outros, a incapacidade de continuar a observá-lo de longe, é a descoberta de nossa ternura, a descoberta do bodhichitta. Essa é uma palavra sânscrita que significa "coração nobre ou desperto". Diz-se que está presente em todos os seres. Assim como a manteiga é parte do leite e o óleo, da semente de gergelim, essa ternura é inerente a mim e a você.

Stephen Levine escreve sobre uma mulher que estava morrendo, em terrível sofrimento e extrema amargura. No momento em que sentiu que não podia mais suportar a dor e o ressentimento, inesperadamente, passou a experimentar o pesar de outros em agonia: uma mãe faminta na Etiópia, um adolescente desvairado morrendo de overdose em um apartamento imundo, um homem esmagado por um deslizamento de terra, morrendo sozinho à margem de um rio. Ela relatou ter compreendido que essa não era a sua dor, mas a de todos os seres. Não era apenas a sua própria vida, mas a vida em si mesma.

Despertamos o bodhichitta, essa ternura pela vida quando não podemos mais nos proteger da vulnerabilidade de nossa condição, da fragilidade fundamental da existência. Nas palavras do décimo sexto Gyalwa Karmapa: "Recebemos tudo. Deixamos que a dor do mundo toque nosso coração e a transformamos em compaixão".

Diz-se que, em tempos difíceis, somente o bodhichitta pode curar. Quando não encontramos inspiração, quando nos sentimos prestes a desistir, esse é o momento em que a cura pode ser encontrada na ternura da própria dor. Esse é o momento de tocar o autêntico coração do bodhichitta. No meio da solidão, do medo, do sentir-se incompreendido e rejeitado, encontra-se a pulsação de todas as coisas, o autêntico coração de tristeza.

Pema Chodron
(em”Quando Tudo se Desfaz”)