terça-feira, 30 de março de 2010

Memórias (2)

Durante muito tempo, no início de minha prática errante e confusa, as informações vinham apenas dos poucos livros sobre Zen disponíveis no Brasil. Estes, em sua maioria, eram publicados pela Editora Pensamento e seus autores eram praticantes de alguma arte influenciada pelo Zen (arranjos florais, arco-e-flecha, pintura, etc). Havia também alguns poucos livros de D. T. Suzuki, outros de Thich Nhat Hanh e "Os Três Pilares do Zen", de Philip Kapleau.

Não custa lembrar que nessa época - segunda metade da década de 80 e início da de 90 - não existia ainda a internet, logo não se tinha acesso a mestres e textos não publicados no Brasil. Por esse motivo o Zen era então para mim mais teórico do que prático. Um dia, li que o Consulado do Japão no Rio de Janeiro estava abrindo sua biblioteca para o público. Vislumbrei a possibilidade de ter acesso a novas obras sobre o Zen e no dia seguinte fui correndo inscrever-me. Lá encontrei "Zen Mind, Beginners Mind" (Mente Zen, Mente de Principiante".

E minha prática recomeçou...

segunda-feira, 29 de março de 2010

As Lições da Água - 3

A água se acumula até encontrar a borda mais baixa

A frase "Quando a água cai num fosso, ela se acumula até encontrar a borda mais baixa" pode ser reinterpretada da seguinte forma: "Quando uma pessoa sábia (água) depara-se com uma situação de dificuldade (fosso), ela se interioriza (acumula-se) até que naturalmente encontra a saída mais fácil (borda mais baixa)".
Numa situação complicada em que não existe solução imediata, o sábio também se acumula, isto é, volta-se para dentro de si em busca de recursos interiores. Faz da adversidade uma oportunidade para ficar quieto, para meditar, ver como está conduzindo seus ideais, quais são seus valores mais importantes e qual é o sentido da sua existência. O sábio "acumula" seus conteúdos interiores e isso faz com que aumente o nivel de sua consciência, do mesmo modo que o nivel da água se eleva quando ela se acumula no fosso. Nesse processo de interiorizar-se, de elevar-se, a água e o sábio encontram a borda mais baixa, encontram a saída natural, o caminho que permite continuar o fluxo, a vida.

Roberto Otsu
em "A Sabedoria da Natureza"

As Lições da Água - 2

O caminho mais fácil nem sempre é o mais curto

Temos a tendência a considerar que o caminho mais fácil é o caminho mais curto. Pode ser verdade em alguns casos, mas não é regra. O caminho mais fácil é o caminho mais fácil. Ponto. Não significa necessariamente o caminho mais curto. São o ego e a ansiedade que criam o desejo de que os caminhos mais fáceis sejam também os mais curtos. A água não tem ego nem pressa e o caminho que ela faz em direção ao mar é o do menor esforço e não o mais curto. Ás vezes, ao contrário da vontade do ego, acontece do caminho de menor esforço ser o caminho mais longo.
A água não pensa na distância a ser vencida, ela apenas flui por onde é possível. O terreno e seus acidentes são suas circunstâncias e a água não se queixa de nada. Ela "sabe" que por aquele caminho tudo é mais fácil e sem desgastes. Não é esforço nenhum para a água descer um terreno em declive e pelos caminhos abertos.
Roberto Otsu
em "A Sabedoria da Natureza"

As Lições da Água - 1


A água vai pelo caminho mais fácil

A água vai pelo caminho mais fácil. Quando vemos um filete de água no quintal ou o curso do rio numa paisagem, é fácil "entender" essa frase. Mas quantos de nós paramos para pensar sobre essa realidade antes de ter lido ou ouvido essas palavras?

Vivemos numa sociedade que aprendeu a valorizar coisas complexas, teorias impenetráveis, palavras rebuscadas, pensamentos mirabolantes, rococós mentais, retóricas exageradas e caminhos complicados. Aprendemos a supervalorizar o trabalho árduo, a insistência, a dificuldade, o sofrimento para conquistar as coisas. Achamos que só é bom aquilo que for sofrido. Isso é masoquismo: "Bate que eu gosto!"

Sem dúvida alguma, o esforço é uma qualidade importante. O problema é a sua supervalorização e a crença que somente as coisas conseguidas com muito esforço e sofrimento é que tem valor. Para os sábios orientais, qualquer coisa que exija esforço demais não é natural. Ou as coisas acontecem naturalmente, sem desgastes, ou a pessoa está atrás de alguma coisa que não corresponde às realidades do momento. Se existe esforço excessivo, a pessoa pode estar tomada pelo desejo e pela obstinação. E, muitas vezes, para conquistar o objeto de desejo, ele acaba tendo atitudes insensatas como ir pelo caminho de maior atrito e dificuldade.
Roberto Otsu
em " A Sabedoria da Natureza"

O mistério é a própria resposta

Para os antigos povos orientais, especialmente para os taoístas, a Natureza era um grande mistério, algo inexplicável. Mas não se angustiavam por isso. Ainda hoje, para as pessoas contemplativas, o mistério é a própria resposta. Elas não criam teorias nem explicações complicadas, apenas aceitam que as verdades essenciais são inalcançáveis à mente humana. Entendem que o fato em si é mais importante do que os conceitos. A realidade vale por si só. Desde a antiguidade, os sábios taoístas afirmam a realidade, afirmam o mistério. Dizem que é para isso que o mistério existe: para ser mistério.

Roberto Otsu
em "A Sabedoria da Natureza"

domingo, 28 de março de 2010

É melhor nos juntarmos à correnteza...



Apenas nós, seres humanos, acreditamos erroneamente que tudo é imutável. Esforçamo-nos para não sermos levados pela correnteza, e lamentamos tudo que se vai. No entanto, não há como parar o fluir, que envolve também nossa dor e nossa luta.


Ao invés disso, é melhor ver as coisas como são e nos juntarmos a essa correnteza, com suavidade. Apenas assim poderemos encontrar prazer na fugacidade das coisas, uma vez que é justamente essa fugacidade que tece as mais diversas figuras na tapeçaria da vida.


Se escutarmos um rio sem atenção, a água que corre parece ter um ritmo constante e ininterrupto. Entretanto, nenhuma gota d'água passa duas vezes sobre a mesma pedra.


A vida humana não é diferente. Acreditar que ontem é igual a hoje é resultado de nossa ignorância e insensibilidade. São as nossas mentes e nossos olhos iludidos que vêem o passado igual ao presente. Os olhos iluminados vêem claramente a imagem das coisas em eterno movimento e reconhecem que um instante é diferente de qualquer outro.


Shundo Aoyama Roshi
Monja Zen ("Para Uma Pessoa Bonita")

Hai-kais (1)

Uma truta salta;
no fundo da água
as nuvens vão e vêm.


Se somos atentos,
as silenciosas flores
nos falarão ao íntimo.


Uma brisa fresca;
a abóbada do céu se enche
com as vozes dos pinheiros.

A corrente do vale;
até as pedras cantam
sob as montanhas cobertas de cerejeiras.

Poemas de Onitsura, que viveu por volta da segunda metade do séc 17.

Sem desperdício

Chegaram aos ouvidos do príncipe Takayasu os comentários de que mestre Kendó, uma das maiores figuras espirituais anteriores a era Meiji (1868), deleitava-se com suntuosas ceias após todos terem adormecido.
Na noite seguinte o príncipe, mesmo sendo um profundo admirador de Kendó, escondeu-se no jardim e viu que realmente o mestre comia sozinho em sua cabana. Ingignado, Takayasu pulou de súbito a janela, e o mestre, surpreendido, cobriu com rapidez sua tigeja.
- O que você está escondendo? - perguntou o príncipe.
O mestre pediu para que ele esquecesse o assunto e não insistisse, mas quando o príncipe fez menção de tomar a tigela, Kendó a descobriu e mostrou seu conteúdo, dizendo:
- Me envergonha muito de que isso tenha chegado aos ouvidos de Sua Alteza. Há aqui muitos monjes estudantes vindo dos mais diversos lugares do país, e apesar de eu sempre insistir para que não desperdicem uma gota de água sequer e nem joguem fora sobras de legumes e arroz, continuam jogando os talos e tudo o mais pelo ralo. Para evitar esse desperdício, coloquei uma pequena rede dentro do ralo, e quando todos dormem recolho o que o que ficou retido ali, fervo, e aproveito como ceia. Faço isso há muitos anos. Lamento profundamente que uma história tão sórdida venha a incomodar teus nobres ouvidos.

Citado por Irmgard Schloegl em "La Sabiduria do Zen"

Borboleta


Uma flor caída

voltando ao galho?

Era uma borboleta.


Moritake
citado por Samuel Wolpin em "El Zen en la Literatura y la Pintura"

As portas do céu

Um soldado perguntou a Hakuin se o céu e o inferno realmente existiam.
- Não o conheço. Quem é você? - perguntou o mestre.
- Um samurai.
- Você, um samurai? Que classe de senhor há de querê-lo jubto a si, se tens essa cara de bandido e com uma espada que, de tão enferrujada, seria incapaz de cortar a minha cabeça?
O guerreiro, completamente enfurecido, sacou sua arma.
- Atenção! - exclamou Hakuin - estão se abrindo as portas do inferno!
Ao ouvir essas palavras, o samurai, por disciplina, guardou sua espada e inclinou-se profundamente, reverenciando seu interlocutor.
- Agora, ao contrário, estão se abrindo as portas do céu! - concluiu Hakuin.

citado por Paul Reps em "101 Histórias Zen".

A jóia nas mãos

Buscando a lua no céu,
muitos deixam cair a jóia que têm nas mãos.

Trevor Ledgett em "A First Zen Reader"

Honrar o baixo

Para o ideal, busca o alto;
para a prática, honra o baixo.

citado por Trevor Ledgett, em "A First Zen Reader"

sábado, 27 de março de 2010

Navegando, sentando


Navegando, finalmente chegarás onde termina a correnteza;
sentando-te, verás como se forma uma nuvem.


Trevor Ledget, em "A First Zen Reader"

O que mudou


O grande guerreiro Kumagai, depois de converter-se em monge, foi insultado e cuspido por Utsunomiya Shiro. Kumagai permaneceu de cabeça baixa, e após seu ofensor ter partido, compôs os seguintes versos:

A montanha é a montanha
e o caminho é o mesmo de antes
o que mudou foi meu próprio coração.


(Uma das minhas estórias Zen favoritas)

citado por Samuel Wolpin em Texto y Meditaciones sobre el Zen".

Atenção

Um monge a seu mestre:
- Qual o caminho mais curto para se chegar à iluminação?
O mestre respondeu:
- Atenção.
O discípulo de novo:
- Afora isso, de que mais necessito?
- Atenção, atenção.
- Já sei que a atenção é muito importante, mas o que vem depois?
E o mestre:
- Atenção, atenção, atenção.

citado por Samuel Wolpin em "La doctrina y la enseñanza Zen".

A lua que brilha

Meu telhado e minha casa queimaram;
já nada me oculta
a lua que brilha.

Zenrin

Nosso pensamento diário é o Tao

Um monge perguntou a seu mestre:
- O que significa quando você diz que o nosso pensamento diário é o Tao?
E o mestre:
- Quando tenho sono, durmo; quando tenho vontade de sentar, me sento.
- Não consigo entendê-lo.
- No verão buscamos um lugar fresco; no inverno nos sentamos próximos ao fogo.

citado por Samuel Wolpin em "La doctina y la enseñanza Zen".

Nada a esconder

Um monge se queixava de que o mestre não falava claro. Em um dia de primavera, quando passeavam pelo campo, o aluno disse:
- Que perfume maravilhoso estão exalando essas flores!
Ao que mestre respondeu:
- Vê como não te escondo nada?

citado por Samuel Wolpin em "La doctrina y la enseñanza Zen".

Apenas estar ali



Por conhecer ambos os lados da realidade, os Budas mantém este tipo de atitude. Eles não se perturbam por qualquer fato ruim, e nem se extasiam por qualquer acontecimento bom. Eles possuem o verdadeiro contentamento, o qual sempre permanecerá com eles. A canção básica da vida permanecerá a mesma, e nela haverá algumas melodias felizes e algumas melodias tristes também.

Esse é o sentimento que a pessoa iluminada possui. Significa que quando está quente, ou quando você está triste, você deve estar completamente envolvido em sentir calor ou tristeza, sem ansiar pela felicidade. Quando está feliz, deve apenas apreciar sua felicidade. Se as circunstâncias mudarem repentinamente, não nos importamos. Hoje podemos estar muito felizes, mas amanhã não sabemos o que ocorrerá conosco. Estamos prontos para o que vier a acontecer amanhã, e por isso apreciamos o hoje completamente. Esse estágio deve ser alcançado através de sua prática, não por meio de leituras.

Shunryu Suzuki
em "Branching Streams Flow in the Darkness"

sexta-feira, 26 de março de 2010

Buda que sofre, Buda feliz


Vocês conhecem esse famoso koan? Um monge perguntou ao mestre: "Está tão quente! Como é possível escapar desse calor?" E o mestre respondeu: "Por que você não vai para um lugar onde não haja nem frio e nem calor?" O discípulo espantou-se: "Existe um lugar onde não há nem frio e nem calor?" E o mestre: "Quando está frio você deve ser um buda frio. Quando está calor você deve ser um buda quente."

Vocês podem pensar que ao praticar zazen alcançarão um estágio onde não exista frio e nem calor, onde não exista prazer ou sofrimento. Vocês podem se perguntar, "se praticarmos zazen é possível ter esse tipo de conquista?"

Contudo o verdadeiro professor responderá: "Quando vocês sofrerem, devem sofrer. Quando sentirem-se bem, devem sentir-se bem". Algumas vezes você deve ser um buda que sofre. E algumas vezes você deve ser um buda feliz.



Shunryu Suzuki
em "Branching Streams Flow in the Darkness"

quinta-feira, 25 de março de 2010

Como nós a recebemos


A lua projeta sua luz sobre todas as coisas,
e uma doce brisa envolve cada morada.
Depende de nós se a recebemos como brisa
ou como vento gelado.

Shundo Aoyama Roshi
em "Para uma Pessoa Bonita"

Respeito por si próprio

Quando você é apenas você, não pensando ou tentando dizer algo especial, apenas dizendo o que há na sua mente e expressando como se sente, então há verdadeiro respeito por si próprio.

Shunryu Suzuki
em "Branching Streams Flow in the Darkness"

Rios e montanhas a passar


Atrás da montanha que acabamos de subir,
há sempre outra ainda maior a passar;
haverá sempre rios mais fundos a transpor.
Só com imensurável amor podemos passar pelos rios e as montanhas
e cumprir a tarefa última do nosso cotidiano.

Hogen Yamahata Daido
em "O Caminho Aberto"

Nascendo agora

"Não há nenhuma vida após esse momento,
nem nenhuma vida antes dele.

Cada um de nós está a nascer aqui e agora."


Hogen Yamahata Daido
em "O Caminho Aberto"

O som do vale


"O som do vale
está dando uma grande conferência.
A cor da montanha
é o verdadeiro corpo purificado.
Da meia-noite ao amanhecer
escuto 84.000 sutras."
 

Mestre Taisen Deshimaru
(em "La Voz del Valle")



Qual é o meu caminho?


"O meu caminho é aqui mesmo,
onde quer que eu meu encontre"

Ranryo
citado por Thomas Cleary em "Novos Contos Zen".

O rio



Ser como rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite
Se há estrelas no céu, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.


(Manuel Bandeira)