Como é que dentro da nossa mente, nós construímos um mundo
inteiro, não é? E, um fio de cabelo separa todo o céu e a terra. O paraíso e o
inferno. Um ligeiro, pequeno evento pode mudar tudo. Transpondo para o nosso
problema, do ponto de vista espiritual, a nossa atitude mental é de que
perdemos. Perdemos tudo. Perdemos todas as construções, tudo mais, estamos
perdidos e então sentamos para nos encontrar. Mas esse “nos encontrar”, ele
pode ser tão repentino e solucionar tudo tão completamente, como de repente
achar a carteira perdida com tudo dentro. E todo o processo se dissolver
instantaneamente. A iluminação é assim. A iluminação é um processo em que você
vê a fantasia construída de tudo na vida. Todas as coisas, todas as angústias,
todos os medos, todas as paixões, tudo...você consegue ver claramente a sua
insubstancialidade. É insubstancial e pode ser dissolvido num estalar de dedos,
numa pequena percepção.
Muitos anos atrás, eu estava numa empresa e era sócio
minoritário, tinha uma pequena parte de uma empresa, para a qual eu fui
convidado por um proprietário que tinha outras fábricas. Isso foi no Vale dos
Sinos, no Rio Grande do Sul. E, resumindo a história, num belo dia, nós
estávamos exportando e eu fui no Banco do Brasil para receber um contrato de
câmbio, e fui informado que o proprietário das empresas tinha retirado todo o
dinheiro no exterior, na Alemanha, e nos deixado sem as receitas das
exportações que tínhamos feito. De repente, eu entendi que tinha sido um grande
golpe, um grande desfalque. Ele estava mal e resolveu receber todo o dinheiro
dos contratos de câmbio e ficar no seu país de origem, na Alemanha. Eu perguntei
a um advogado o que eu poderia fazer e ele disse que até que nós conseguíssemos
resolver, conseguíssemos eventualmente receber alguma coisa desse desfalque,
tudo já teria quebrado aqui, que não valeria a pena e a expressão usada por ele
foi “colocar dinheiro bom em cima de dinheiro ruim”. Você vai gastar dinheiro e
não vai obter nada.
Então, simplificando, eu era avalista da empresa e, naquele
momento, vi que perderia tudo: nome, crédito, empresa, tudo que tinha sido
construído durante alguns anos. Eu voltei pra casa pensando: “Bom, desabou
tudo. Tudo que eu construí, como diretor de indústrias, etc e tal, se desfez
agora, porque eu vou ser conhecido como alguém que estava numa empresa que
faliu”. Até que você explique que seu sócio fez um grande desfalque, isso não
soluciona nada. Então, fui dirigindo até que cheguei em casa e pensei: “o que
eu posso fazer se eu vou perder tudo, meus bens, minha casa, tudo mais? Como eu
vou explicar isso? Então, eu fui até o meu quarto e tinha um zafu. Aí eu peguei
o zafu (almofada de meditação), fechei a porta do quarto, coloquei o zafu no
chão... é, não tem solução ... então me sentei em zazen. Isso foi na década de
80, faz mais de 30 anos. Sentei no zafu e olhei para porta fechada. E não levou
muito tempo. De repente, eu percebi uma coisa muito simples: eu vou perder
tudo, mas eu POSSO perder tudo. Eu tenho a capacidade de perder tudo. Essa
simples idéia “eu posso perder tudo e eu posso construir tudo também. Eu sou
livre, sou completamente livre para perder tudo. Eu posso perder tudo: carro,
casa, nome, crédito, qualquer coisa. Eu sou livre para perder”. Aí, me levantei
do zafu, entrei no carro e voltei para o Vale dos Sinos. Falei com cada um dos
credores da empresa e passo a passo, comecei vendendo estoques, devolvendo
máquinas, etc., fazendo uma coisa depois da outra. Eu resolvi tudo. Consegui
resolver absolutamente tudo. E isso aconteceu porque eu pensei “Sim, eu posso
perder tudo. Eu tenho condição de perder tudo”.
É mais ou menos como perder a carteira com todos os
documentos. O que que você tem que fazer? Passo a passo, fazer cada documento
de novo. Só isso. Ligar, bloquear, etc. Fazer tudo de novo, passo a passo. Tudo
você conseguirá. É como morrer, também. Receber uma notícia de que tem uma
doença terminal. “Ah, eu sei que vou morrer”. Como eu contei ontem, daquela
aluna que veio aqui em janeiro, aqui em Florianópolis e falou comigo: “Monge,
eu vou morrer esse ano. É a terceira reincidência e eu sei que eu vou morrer. O
que que eu faço”? Simples, vamos preparar para morrer. Vamos nos sentar em
zazen e nos preparar para ter uma boa mente para morrer. Não é tão complicado.
É passo a passo, simplesmente continuar andando para a frente, porque se você
andar para a frente, dez trilhões de léguas, encontrará a si mesmo, no mesmo
lugar. Nós temos a capacidade de encontrarmos a nós mesmos, além dos sonhos e
dos jogos todos da vida. Só ir andando e resolvendo as coisas à medida que aparecem.
É como no sesshin. Eu estou fazendo zazen, está difícil
fazer esse zazen, está doendo a minha perna. Está bem. Depois tem kinhin. Posso
esperar pelo kinhin, aí, relaxo. Então, zazen de novo. E basta fazer um zazen
de cada vez. É só esse. Só mais esse. E, agora, mais outro. Depois, mais outro.
Depois, o outro dia. Só isso. Nenhum dos seres que estão aí fora fica olhando
no calendário. Os pássaros, os peixes, as plantas, eles não olham no
calendário. Eles vivem um dia de cada vez. Então, a única coisa que nós
precisamos fazer é dar um passo.
Meu grande problema, no evento que eu contei para vocês,
foi toda a imaginação. Tudo o que eu imaginei, naquele trajeto até Porto
Alegre, dirigindo e pensando “vou perder tudo”, foi horrível. Me lembro até
hoje. Mas, depois que eu vi que tinha capacidade de perder tudo, então, pude
voltar e resolver tudo. E também todos os problemas se dissolveram na minha
frente.
Monge Genshô
(postado em seu blog "O Pico da Montanha é onde estão os meus pés")