quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Arrependimento e culpa




Pema Chodron: Tendo isso em mente, como podemos lidar com essa tendência profundamente enraizada de nos sentirmos culpados?

Ven. Dzigar Kongtrul Rinpoche: Primeiro, num nível mais básico, podemos nos lembrar de que a culpa não traz nenhum tipo de benefício e só aumenta nosso apego neurótico ao eu. Mas, sobretudo, podemos perceber que a culpa é, na verdade, uma forma de tentarmos fugir da responsabilidade pelas nossas ações e circunstâncias. Nos sentimos culpados quando não aceitamos totalmente nossas circunstâncias. Em vez disso, tentamos o tempo todo proteger e consolar esse eu imaginário. Quando nos sentimos culpados, estamos na verdade dando ainda mais solidez a esse “eu”, em vez de olharmos honestamente para a situação que está diante de nós. Se nos lembrarmos de que a mente é inocente, ainda que nossas ações tantas vezes se baseiem na ignorância, podemos nos distanciar da situação o suficiente para observá-la realmente de maneira honesta. A culpa, por outro lado, é um desvio que não traz solução alguma – não tem fim. Você pode achar que está enfrentando alguma coisa porque está mergulhado nela – esfregando na própria cara que foi algo muito ruim – mas a realidade é que você não está aceitando a situação.

PC: Rinpoche, se eu fizer algo de mal e não me sentir culpada por isso, como vou poder me reconciliar com o que eu fiz? Como posso reconhecer completamente o que eu fiz, e ainda assim não me sentir culpada?

VDKR: Por meio do arrependimento. O arrependimento é uma função da inteligência da mente. Podemos ver o que fizemos para causar sofrimento a nós mesmos e aos outros. Reconhecemos o que fizemos e também resolvemos não fazê-lo de novo. Isso é muito útil. Vemos o erro claramente e o reconhecemos, então ele não permanece no nosso fluxo mental. Essa capacidade de autorreflexão traz enorme liberdade. É como se você parasse de brigar com as suas circunstâncias e observasse honestamente. Como a sua visão do eu não é tão densa, você pode observar sem se intimidar. Fazemos essa prática de reconhecer e purificar, com um profundo arrependimento pelo mal que causamos. Nós o expomos a nós mesmos.

PC: Rinpoche, realmente não consigo perceber a diferença entre arrependimento e culpa. Ainda existe a noção de que alguém fez algo de mal.

VDKR: A diferença entre a culpa e o arrependimento é que a culpa nunca encara a má ação diretamente. Existe apenas um sentimento intenso de “Gostaria que não tivesse acontecido. Queria não ter feito isso. Queria não ter ficado nervoso” ou “Queria não ter feito algo tão vergonhoso”, e assim por diante. O arrependimento é o oposto da culpa. Nós reconhecemos o erro, expomos para nós mesmos que agimos mal e que isso se originou da nossa ignorância, mas não nos deixamos levar pelas emoções e pelas nossas histórias. A noção de remorso está longe de ser tão pesada quanto a ideia do “lado mau” que a culpa produz. Na verdade, a sensação do remorso sincero é libertadora. Ao aplicar a visão da ausência de eu, entendemos como o inútil sentimento de culpa nos congela na percepção que temos de nós mesmos como maus. Quando alguém sente que tem espaço para se abrir e consegue entender que sua ação é movida pela ignorância, e não por uma essência intrinsecamente má, não hesita em enxergar quando faz algo que prejudica outra pessoa. Tampouco hesitará em pedir desculpas se isso lhe parecer benéfico.

PC: Obrigada. Isso com certeza esclarece muita coisa para mim. E há outros benefícios em refletir sobre a ausência de culpa?

VDKR: Quando alguém compreende a ausência de culpa dentro de si, sente-se mais livre e mais leve. O apego ao eu, que todos nós temos, se vai. Também começamos a trabalhar melhor com nossas mentes. A mente fica mais ágil e flexível, porque nossa inteligência se torna o ponto de referência, em vez desse eu ao qual nos agarramos tão desesperadamente. Então podemos diferenciar nossas ações com mais precisão e trabalhar com elas de formas mais criativas no futuro, com mais sabedoria. Em relação às más ações das outras pessoas, percebemos que a natureza de suas mentes também é inocente, sem culpa. A ignorância as influenciou, e elas estão cegas e vulneráveis. E, como elas estão impotentes diante do poder da ignorância, é mais fácil gerarmos compaixão por elas e perdoá-las também. É muito mais fácil fazer tudo isso quando enxergamos a pessoa como inocente, e não como culpada e intrinsecamente má.



(Conversa entre Pema Chodron e Dzigar Kongtrul Rinpoche – Publicado originalmente na Revista Tricycle. Tradução de Lilian Moreira Mendes. Retirado do site Buda Virtual)


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