Pema Chodron: Tendo isso em mente, como podemos lidar com
essa tendência profundamente enraizada de nos sentirmos culpados?
Ven. Dzigar Kongtrul Rinpoche: Primeiro, num nível mais
básico, podemos nos lembrar de que a culpa não traz nenhum tipo de benefício e
só aumenta nosso apego neurótico ao eu. Mas, sobretudo, podemos perceber que a
culpa é, na verdade, uma forma de tentarmos fugir da responsabilidade pelas
nossas ações e circunstâncias. Nos sentimos culpados quando não aceitamos
totalmente nossas circunstâncias. Em vez disso, tentamos o tempo todo proteger
e consolar esse eu imaginário. Quando nos sentimos culpados, estamos na verdade
dando ainda mais solidez a esse “eu”, em vez de olharmos honestamente para a
situação que está diante de nós. Se nos lembrarmos de que a mente é inocente,
ainda que nossas ações tantas vezes se baseiem na ignorância, podemos nos
distanciar da situação o suficiente para observá-la realmente de maneira
honesta. A culpa, por outro lado, é um desvio que não traz solução alguma – não
tem fim. Você pode achar que está enfrentando alguma coisa porque está
mergulhado nela – esfregando na própria cara que foi algo muito ruim – mas a
realidade é que você não está aceitando a situação.
PC: Rinpoche, se eu fizer algo de mal e não me sentir
culpada por isso, como vou poder me reconciliar com o que eu fiz? Como posso
reconhecer completamente o que eu fiz, e ainda assim não me sentir culpada?
VDKR: Por meio do arrependimento. O arrependimento é uma
função da inteligência da mente. Podemos ver o que fizemos para causar
sofrimento a nós mesmos e aos outros. Reconhecemos o que fizemos e também
resolvemos não fazê-lo de novo. Isso é muito útil. Vemos o erro claramente e o
reconhecemos, então ele não permanece no nosso fluxo mental. Essa capacidade de
autorreflexão traz enorme liberdade. É como se você parasse de brigar com as
suas circunstâncias e observasse honestamente. Como a sua visão do eu não é tão
densa, você pode observar sem se intimidar. Fazemos essa prática de reconhecer
e purificar, com um profundo arrependimento pelo mal que causamos. Nós o
expomos a nós mesmos.
PC: Rinpoche, realmente não consigo perceber a diferença
entre arrependimento e culpa. Ainda existe a noção de que alguém fez algo de
mal.
VDKR: A diferença entre a culpa e o arrependimento é que a
culpa nunca encara a má ação diretamente. Existe apenas um sentimento intenso
de “Gostaria que não tivesse acontecido. Queria não ter feito isso. Queria não
ter ficado nervoso” ou “Queria não ter feito algo tão vergonhoso”, e assim por
diante. O arrependimento é o oposto da culpa. Nós reconhecemos o erro, expomos
para nós mesmos que agimos mal e que isso se originou da nossa ignorância, mas
não nos deixamos levar pelas emoções e pelas nossas histórias. A noção de
remorso está longe de ser tão pesada quanto a ideia do “lado mau” que a culpa
produz. Na verdade, a sensação do remorso sincero é libertadora. Ao aplicar a
visão da ausência de eu, entendemos como o inútil sentimento de culpa nos
congela na percepção que temos de nós mesmos como maus. Quando alguém sente que
tem espaço para se abrir e consegue entender que sua ação é movida pela
ignorância, e não por uma essência intrinsecamente má, não hesita em enxergar
quando faz algo que prejudica outra pessoa. Tampouco hesitará em pedir
desculpas se isso lhe parecer benéfico.
PC: Obrigada. Isso com certeza esclarece muita coisa para
mim. E há outros benefícios em refletir sobre a ausência de culpa?
VDKR: Quando alguém compreende a ausência de culpa dentro
de si, sente-se mais livre e mais leve. O apego ao eu, que todos nós temos, se
vai. Também começamos a trabalhar melhor com nossas mentes. A mente fica mais
ágil e flexível, porque nossa inteligência se torna o ponto de referência, em
vez desse eu ao qual nos agarramos tão desesperadamente. Então podemos
diferenciar nossas ações com mais precisão e trabalhar com elas de formas mais
criativas no futuro, com mais sabedoria. Em relação às más ações das outras
pessoas, percebemos que a natureza de suas mentes também é inocente, sem culpa.
A ignorância as influenciou, e elas estão cegas e vulneráveis. E, como elas
estão impotentes diante do poder da ignorância, é mais fácil gerarmos compaixão
por elas e perdoá-las também. É muito mais fácil fazer tudo isso quando
enxergamos a pessoa como inocente, e não como culpada e intrinsecamente má.
(Conversa entre Pema
Chodron e Dzigar Kongtrul Rinpoche – Publicado originalmente na Revista
Tricycle. Tradução de Lilian Moreira Mendes. Retirado do site Buda Virtual)
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