Somos iguais a uma folha de papel que ficou muito tempo
enrolada. Quando tentamos abri-la sobre a mesa, ela se enrola de novo no
instante em que erguemos as mãos. É assim que se realiza o treinamento (da
mente). Talvez haja quem pergunte o que as pessoas fazem nos retiros, passando
oito horas por dia sentados. Fazem exatamente isso: familiarizam-se com um novo
modo de lidar com o surgimento dos pensamentos. Quando começamos a nos
acostumar com o reconhecimento dos pensamentos é como se fôssemos capazes de
identificar rapidamente numa multidão alguém que conhecemos. Quando surge um
pensamento potente de forte atração ou raiva sabemos que vai levar a uma
proliferação de pensamentos, passamos a reconhecê-lo: “Ah, lá vem essa idéia!”.
Esse é o primeiro passo. Ajuda muito a evitar que tal pensamento o domine.
Depois de se acostumar com isso, o processo de lidar com os pensamentos se
torna mais natural. Não é preciso lutar e aplicar antídotos específicos a cada
pensamento negativo, porque sabemos como deixá-lo se esvaecer sem deixar
vestígios. Os pensamentos se desamarram. Por fim, haverá uma época em que os
pensamentos chegarão e partirão como um pássaro que passa pelo céu, sem deixar
vestígios.
Isso só pode acontecer por intermédio de treinamento
constante e experiência genuína. Também é assim que podemos, aos poucos,
adquirir certas qualidades que passarão a integrar nossa natureza, tornam-se um
novo temperamento.
Vejamos com exemplo relativo à compaixão. No século XIX,
viveu um grande eremita chamado Patrul Rinpoche. Certa feita ele disse a um dos
discípulos que fosse para uma caverna e passasse seis meses meditando, não
pensando em nada além da compaixão. No início, o sentimento de compaixão por
todos seres é sempre forçado, artificial. Depois, gradualmente, a mente fica
inundada de compaixão; ela permanece na mente sem esforço. Passados os seis
meses, o meditador estava sentado à entrada da caverna e viu um cavaleiro
solitário cantando no vale. O yogui teve uma espécie de premonição clara, uma
sensação forte, de que o homem morreria em uma semana. A diferença entre a
visão daquele homem cantando alegremente e a súbita intuição do yogue o deixara
tristíssimo com relação à existência condicionada, que os budhas chamam de
samsara. Nesse momento, sua mente foi invadida por uma compaixão genuína e
avassaladora que nunca mais partiu. Passara a fazer parte de sua natureza, o
verdadeiro sentido da meditação. Ver o homem foi uma espécie de acionamento do
gatilho, mas o essencial aconteceu antes da familiarização. O incidente não
teria tido a mesma repercussão se ele não tivesse passado os seis meses imerso
em compaixão. Estamos falando de como ajudar a sociedade. Se pretendemos
contribuir com algo para a sociedade ter uma nova idéia das coisas, precisamos
começar com nós mesmos. Precisamos decidir nos transformar, e isso só acontece
com o treinamento, e não por meio de idéias fugazes. É essa a contribuição que
pode provir da prática budista.
Matthieu Ricard
(citado por Daniel Goleman em “Como Lidar com Emoções Negativas”)
(citado por Daniel Goleman em “Como Lidar com Emoções Negativas”)
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