quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Um ato de abnegação

                   Santôka Taneda


Santôka Taneda era um poeta andarilho e um monge da tradição zen-budista Sôtô. Publicava seus poemas, revestidos de características absolutamente únicas, em uma revista. Atraído pelos poemas, o mestre em poesia Sumita Ôyama tinha vontade de encontrar-se com o autor. Certo ano, soube que Santôka deixara a vida de andarilho e passara a residir em uma casa abandonada na zona rural de Ogôri, na província de Yamaguchi. Foi visitá-lo em um dia muito frio de inverno, próximo do final do ano.

Santôka estava a sua espera, com a refeição já pronta, graças ao arroz que havia obtido por meio do takuhatsu*.

Entre goles de saquê, conversaram até de madrugada sobre literatura e religião. Mas, na hora de dormir, Santôka disse, sobressaltado: “Essa não! Não tenho cobertor para você. Mas não tem problema. Estou feliz por você ter vindo. Vou passar a noite em claro. Durma com o meu cobertor”.

Entretanto, o cobertor era para criança – curto e fino. O travesseiro consistia de três revistas empilhadas.

Quando o mestre Sumita reclamou que estava frio demais para dormir, Santôka ficou preocupado e começou a vasculhar a casa em busca de cobertores melhores. Quando viu que seu esforço era em vão, trouxe roupas, lenços, tudo o que tinha a seu alcance, e empilhou sobre o mestre Sunita. E, por cima de tudo, colocou uma mesa velha dizendo que esse peso daria uma sensação maior de calor.

Graças também ao efeito do saquê, o mestre Sumita acabou caindo no sono. Mas, ao raiar do dia, acordou por causa do vento gélido que fustigava a pele como um chicote. Ao abrir os olhos e procurar por Santôka, viu que este estava meditando em zazen à sua frente, usando o próprio corpo como parede para proteger o amigo do vento. Mestre Sumita nos contou que, mesmo estando sob aquela pilha de coisas, imediatamente se curvou diante de Santôka como quem reverencia um Buda e chorou copiosamente.

Neste instante, jurou que não mais iria permitir que aquele homem vivesse à base de takuhatsu e cumpriu a promessa até o fim, enviando uma ajuda de custo a Santôka até a sua morte.


*Prática do monasticismo budista de esmolar nas ruas, despertando a compaixão das pessoas e permitindo que, ao fazer doações, elas possam acumular virtudes.


Shundo Aoyama Roshi
(em “A Coisa Mais Preciosa da Vida”)

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